Estranho Caminho

"Estranho Caminho" – Uma Odisseia pela Escuridão da Identidade

Em "Estranho Caminho", o roteirista, diretor e montador fortalezense Guto Parente oferece uma obra que transita entre o grotesco e o sublime – um vislumbre perturbador da relação entre realidade e ficção.

O filme emerge como um reflexo sombrio da era contemporânea marcada pelo distanciamento e pela introspecção forçada pela pandemia de COVID-19. Ao moldar sua narrativa a partir das complexidades de sua própria relação paterna, Parente se apropria da tela cinematográfica e transcende a mera representação para se enredar nas profundezas da psique humana.

Protagonista de "Estranho Caminho", o cineasta David, residente em Portugal, retorna ao Brasil para a exibição de um filme sob sua direção num festival de cinema e constata o cancelamento do evento. Tal preâmbulo, que desponta com certa leveza cômica, rapidamente se transforma em um campo de batalha psicológico e emocional. Forçado a buscar abrigo na casa de um pai que mal conhece, David se depara com um ambiente saturado por tensão e desconforto. O pai, um escritor taciturno, representa a figura paterna, não apenas como um antagonista relutante, mas como um espelho distorcido de tudo o que David se tornou e teme enfrentar.

O abre-alas de cunho cômico promovido pelo filme é pura fachada, atrás da qual se desenrola um profundo sentimento de desolação e desconexão. O universo de "Estranho Caminho" é o reflexo sombrio de um estado mental em que as regras da normalidade foram substituídas por um caos estruturado. Parente, habilmente, utiliza a pandemia como um pano de fundo para explorar como situações extraordinárias podem amplificar e revelar as fissuras de identidades e de relações pessoais.

O filme se desdobra em um ritmo inquietante, com uma encenação que subverte a lógica convencional, criando um espaço onde a bizarrice é a norma. A narrativa se move entre o surreal e o terrivelmente real, como um espelho quebrado que reflete diferentes facetas do mesmo rosto angustiado. Parente é um artista do caos ordenado, cujas soluções visuais e sonoras criam um ambiente onde a mente do espectador é desafiada a confrontar suas próprias ansiedades e distorções.

Em sua essência, "Estranho Caminho" se alinha com o cinema experimental, mas com uma abordagem profundamente pessoal e, portanto, mais perturbadora. O filme expõe uma verdade inquietante – em que todos, de alguma forma, se encontram presos em um ciclo de auto-ficção, onde a realidade é continuamente reescrita pela ansiedade e pelas crises existenciais. O resultado é uma fantasia peculiar, uma homenagem sombria ao cinema que desafia e inquieta. "Estranho Caminho" não é apenas um estudo da relação pai-filho, mas uma meditação sobre a natureza da identidade e a forma como as circunstâncias mais bizarras podem desenterrar o que está oculto nas profundezas da psique – uma viagem cinematográfica que, embora carregada de humor peculiar, é fundamentalmente um mergulho perturbador nas complexidades da condição humana.

Parente não apenas narra uma história – ele cria uma experiência visceral que ressoa com a inquietante realidade da existência atual, onde o estranho e o familiar se entrelaçam em uma dança kafkiana e indesejada.

Por Mauro Senna
 

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