Festival do Rio 2024 - Abraço de Mãe

 

“Abraço de Mãe”, como uma mãe que oferece acolhimento e, ao mesmo tempo, pode lançar o olhar de uma vigilante onipotente, este filme de Cristian Ponce se afunda nas águas sombrias da memória, do trauma e de uma maternidade que é tanto nutridora quanto aterradora. Como um abraço que deveria nos aquecer, mas que se transforma em um pesadelo alucinado, o filme mergulha na mente fragmentada de Ana (Marjorie Estiano), uma bombeira que, como uma mãe disposta a proteger os seus, se vê desafiada pelo que está além de qualquer controle humano.

A história começa em um Rio de Janeiro dilacerado por uma tempestade que inunda as ruas e as almas, dando o tom de destruição física e emocional. O dilúvio da cidade é uma metáfora para o turbilhão interno de Ana, uma mulher que, aparentemente, nunca conseguiu "descongelar" emocionalmente após um trauma profundo – um incêndio que queimou sua casa e, talvez, parte de sua própria identidade. Neste cenário de caos, ela é chamada para uma missão que parecia simples: salvar moradores de um asilo prestes a desabar. No entanto, assim como a tempestade que ameaça a cidade, o verdadeiro perigo está no que se oculta nas sombras, nos corredores e nos próprios corações.

O que torna o longa uma experiência única é a sua habilidade em navegar entre o irracional e o visceral com uma graça que quase parece cruel. A câmera de Ponce, com uma fluidez quase maternal, nos conduz através dos corredores apodrecidos do asilo, não como uma simples espectadora, mas como uma cúmplice, sugerindo que o que está prestes a acontecer é algo inevitável. Como se tudo no filme, desde os inofensivos tetos vazando até os olhos brancos dos moradores, estivesse se preparando para dar à luz algo horrível e belo ao mesmo tempo.

Marjorie Estiano, com uma performance sensível e vibrante, interpreta Ana como uma mulher que é tanto mãe quanto filha, heroína e vítima. Sua dor é palpável, seu medo corrosivo. No entanto, é seu momento de virar cuidadora – de finalmente assumir o papel de mãe, não de filha – que redefine todo o seu arco. A jovem aterrorizada com quem Ana se conecta no asilo é o espelho distorcido de seu próprio passado, e essa relação, embora sutil, é o ponto crucial da revelação emocional do filme. Aqui, Ponce não apenas nos dá o terror psicológico, mas também uma meditação sobre o que significa cuidar de outro ser humano, mesmo quando você está quebrada por dentro.

Se o filme tem uma falha, é na forma como evita explicações fáceis para o que está acontecendo. O horror de “Abraço de Mãe” não se revela em uma sucessão de monstros ou criaturas grotescas, mas na maneira como ele brinca com os limites da realidade. O que vemos e o que sentimos, muitas vezes, se entrelaçam de forma indissociável. No entanto, para aqueles que buscam respostas racionais, o filme pode frustrar. As imagens e eventos se acumulam, talvez sem a satisfação de uma explicação definitiva, mas é justamente nessa ambiguidade que reside sua força.

E é aí que o filme se torna um reflexo sombrio da maternidade: como o amor de uma mãe pode ser inexplicável e irracional, como os instintos mais primitivos e os medos mais profundos surgem de lugares incontroláveis e inesperados. A tempestade, a casa em ruínas, o asilo deteriorado – todos eles funcionam como uma metáfora para os elementos interiores que Ana tenta entender, mas nunca realmente controla. Ponce não apenas explora o medo, mas também a aceitação desse medo como uma parte inevitável da experiência humana.

No final, o filme não é apenas uma história de terror. É um abraço de sombras e silêncio, de dor que se recusa a ser mitigada e de momentos de ternura que surgem nos lugares mais inesperados. Como uma mãe que segura o filho em seus braços com um afeto profundo, mas que também está pronta para afastar o mal que se esconde nas sombras, a história nos lança na escuridão com uma delicadeza assustadora.

Este é um filme que vai incomodar, que vai deixar uma sensação de angústia e admiração ao mesmo tempo. E, como o amor de uma mãe, essa experiência – por mais perturbadora que seja – é algo que não se esquece.

Por Mauro Senna

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