Canções que eu guardei pra você
Em um cenário saturado de fórmulas repetitivas e narrativas previsíveis, Canções que eu guardei pra você se apresenta como uma tentativa de ruptura no universo dos musicais. No entanto, essa “ousadia” não é acompanhada de inovação genuína, mas de uma subversão que soa mais forçada do que realmente revolucionária. Em vez de oferecer uma nova linguagem ou visão, o espetáculo rejeita tanto o espectador comum quanto os admiradores do teatro convencional, convidando, no melhor dos casos, ao desconforto estético e intelectual de maneira superficial. A proposta de usar corpo e mente como instrumentos de resistência cênica se perde em um jogo vazio, distorcendo convenções sem provocar uma reflexão substancial.
Sob a direção de Zé Henrique de Paula, com a colaboração de Fernanda Maia, Fran Barros e Inês Aranha, o espetáculo tenta desconstruir a narrativa linear, tratando-a mais como meio do que fim. A intenção é explorar a fluidez das relações contemporâneas e as limitações da comunicação emocional, mas o resultado carece de um direcionamento claro. Em vez de questionar de forma profunda o papel do espectador no teatro moderno, a peça se perde em ambiguidade excessiva, mais confundindo do que provocando reflexão genuína. O público, que deveria ser um participante ativo, acaba preso em um jogo de espelhos, onde a linha entre ficção e realidade se dissolve de maneira desconcertante, e não no bom sentido.
Esse "jogo" começa logo nos primeiros momentos, quando a protagonista Malu (Bruna Guerin) se dirige diretamente à plateia, não mais como personagem, mas como interlocutora do "aqui e agora". O espetáculo recusa a tradicional separação entre palco e público, mas essa escolha inicialmente ousada logo se revela uma tentativa forçada de subverter a experiência teatral. A história deixa de ser claramente "real" ou "fictícia", criando uma interação que, em vez de questionar o papel do espectador de forma profunda, apenas confunde. A revelação de que os personagens são conscientes de sua condição de marionetes teatrais pode até ser uma ironia intrigante, mas, no contexto de um musical, soa mais como uma distração do que uma subversão genuína. Ao invés de derrubar barreiras da narrativa tradicional, o espetáculo se limita a uma tentativa desconexa de se distanciar de algo que nem compreende completamente.
Embora a peça transite pela música popular brasileira, ela se afasta da banalização dessas canções, tratando-as como meros adereços sentimentais. No entanto, essa busca por profundidade não se concretiza. Canções de ícones como Renato Russo, Zélia Duncan, Ana Carolina e Marina Lima são incorporadas com uma intensidade que, à primeira vista, parece desafiar as convenções do gênero. Mas, longe de enriquecer a narrativa, essas músicas sobrecarregam o espetáculo, tentando comunicar as angústias dos personagens de maneira forçada. A musicalidade, que deveria ser o coração pulsante da peça, se torna um artifício para criar uma "profundidade" que raramente se justifica, se perdendo em tentativas excessivas de significado.
A escolha estética radical do espetáculo, embora interessante, não contribui efetivamente ao enredo. As cores vibrantes e saturadas, ao invés de servirem como ornamentação, tentam refletir um mundo distante da linearidade cotidiana. No entanto, essa proposta acaba sendo desarticulada, sem uma verdadeira conexão com as emoções ou a psicologia dos personagens. O cenário de Zé Henrique e César Costa, com seus tons contrastantes e formas não convencionais, tenta transformar o palco em uma extensão da mente dos personagens, mas o efeito é confuso, mais incomodando do que revelando. O espaço oscila entre o fantástico e o mundano sem um propósito claro, perdendo sua função simbólica.
A atuação de Bruna Guerin, que interpreta Malu, tenta explorar a instabilidade emocional e a fisicalidade do personagem, mas sua interpretação oscila entre o exagero e a fragilidade. Em muitos momentos, sua tentativa de "destruir e reconstruir" o papel parece mais uma busca por um significado que nunca se concretiza, tornando a personagem distante e pouco cativante. Ao lado dela, Guilherme Magon constrói Pietro como uma figura quase etérea, cuja presença quase imperceptível acaba sendo irrelevante. Sua sutileza, embora intencional, não ressoa de forma significativa, e a reflexão sobre a fragilidade das relações fica diluída. Felipe Hintze, como Túlio, tenta usar a metacrítica como sua ferramenta mais potente, mas a queixa do personagem sobre sua subordinação ao roteiro se torna apenas uma anedota vazia, uma tentativa de crítica que se perde na própria estrutura rígida da peça.
O espetáculo tenta se equilibrar entre a armadilha do excesso de experimentalismo e a segurança das convenções musicais, mas acaba se tornando desnecessário. Sua tentativa de evitar ambos os extremos resulta em uma mistura sem propósito, onde não se arrisca o suficiente para provocar uma verdadeira reflexão nem se ampara em elementos tradicionais que poderiam criar uma experiência mais envolvente. A ausência de uma moral ou solução no final da peça não é uma escolha ousada, mas uma falha em dar qualquer sentido ou relevância à narrativa. O que se apresenta, no fim, é a crueza de um retrato emocional superficial, que não acrescenta nada de significativo à experiência humana na contemporaneidade.
Em última análise, Canções que eu guardei pra você não se propõe a ser um espetáculo de fácil digestão ou conforto emocional — e isso não é mérito. A peça tenta, de forma visceral, refletir e distorcer a realidade, mas o resultado é um emaranhado de intenções que nunca se concretizam. Não há conclusões, heróis ou vilões, mas também não há profundidade ou significado real. O que sobra ao espectador é uma sensação desconcertante e frustrante, uma inquietação sem propósito. Ao tentar romper com as estruturas teatrais, o espetáculo acaba expondo apenas o vazio de uma busca por autenticidade que, no fim das contas, não vai além da superfície das relações efêmeras e fragmentadas que se propõe a criticar.
Por Mauro Senna
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