Água Fresca Para As Flores
Baseada no romance de Valérie Perrin, a montagem teatral de Água Fresca para as Flores, com dramaturgia e direção de Bruno Costa, é um delicado tributo ao luto — não aquele ruidoso e escancarado, mas o que se revela nos pequenos gestos, nos silêncios longos, nas memórias que insistem em permanecer. É teatro em estado de vigília, onde cada cena soa como uma prece murmurada aos que partiram e aos que ainda resistem.
A narrativa acompanha Violette, zeladora de um cemitério no interior da França, que acolhe os enlutados e convive com a morte como quem cuida de flores — com delicadeza, reverência e uma naturalidade desolada. Marcella Muniz interpreta a protagonista com uma entrega ao mesmo tempo sutil e intensa: corpo contido, voz baixa, olhar que evita o desespero sem ignorá-lo. É por meio dela que o espetáculo respira — ou melhor, suspira.
Bruno Costa propõe uma direção atenta e de ritmo deliberadamente moroso, em sintonia com uma narrativa que se desdobra em múltiplas camadas — temporais, emocionais, afetivas. O tempo torna-se elemento dramatúrgico: as pausas prolongadas e transições lentas criam uma atmosfera contemplativa, quase litúrgica. Com precisão e empatia, Costa guia o público por este cemitério de lembranças, respeitando o peso de cada memória e o silêncio que a envolve.
A cenografia de Teca Fichinski constrói um ambiente que transita entre o doméstico e o fúnebre. A casa de Violette é abrigo e prisão ao mesmo tempo — e o cenário traduz esse paradoxo com cruzes que pairam sobre o cotidiano e móveis antigos que parecem mais guardar memórias do que servir funções. O figurino assinado por Ofélia Lott complementa esse universo com discrição: peças austeras, marcadas pelo tempo, como se tivessem saído de uma arca esquecida. No centro de tudo, um fio de areia, iluminado em destaque, gira lentamente — marcando o tempo de Violette, tempo que parece sempre escapar das mãos e ser maior do que o espetáculo comporta.
A iluminação de Dani Sanchez é peça fundamental na construção poética do espetáculo. A luz projeta sombras que se arrastam pelo palco como lamentos, imprimindo um caráter quase espectral às cenas. Em vez de simplesmente revelar, ela vela — recortando os personagens de modo a acentuar tanto sua solidão quanto sua persistência silenciosa. A concepção da luminotecnia cênica, minuciosamente alinhada ao texto, tomou as palavras como guia, desenhando uma paisagem de luz tão detalhada e intrincada que, ao longo do espetáculo, cada cena parece respirar em sintonia com a escrita de Perrin. O trabalho da mesa de luz, portanto, não é apenas uma operação técnica, mas uma operação artística, criando uma atmosfera densa e visceral, como se as próprias luzes e sombras tivessem sido definidas junto à autora.
A trilha sonora de Thiago Muller e Tibi funciona como um lamento contínuo, tecido por sutilezas sonoras que emergem em sussurros, notas soltas que flutuam como lembranças. Aqui, a música não conduz a cena — apenas a acompanha, como um fantasma discreto que paira sobre tudo.
A fisicalidade dos atores, orientada por Dani Visco, confere à cena uma lentidão ritualística. Os corpos se movem como se estivessem sempre em despedida, em constante travessia. A preparação vocal de Edi Montecchi reforça essa atmosfera com uma fala que se aproxima da confissão — baixa, contida, sincera. Cada palavra parece pesar. Cada frase soa como se fosse a última.
Em Água Fresca para as Flores, a dor não se anuncia — se insinua. O espetáculo emociona não por buscar o choro fácil, mas por erguer, pedra sobre pedra, o túmulo simbólico de uma existência marcada pela perda — e pela força silenciosa de quem segue, apesar dela. Ao final, o que permanece é essa sensação de frescor melancólico, como se uma flor brotasse entre os escombros da dor. E o teatro, aqui, cumpre sua função mais sutil: transformar morte em arte, ausência em presença, silêncio em beleza. Uma peça que não se assiste, se vela — e se leva consigo como um buquê deixado à beira de um túmulo que ainda fala.
Por Paulo Sales
Foto: MSenna
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