Primeira Pessoa, Dom Casmurro
Se o teatro é a arte do encontro, Primeira Pessoa, Dom Casmurro, da Cia de Arte Boursoria, é o encontro entre a pretensão e a ausência de autocrítica. O recorte da obra de Machado de Assis escolhido para a encenação é um lembrete agridoce — ou simplesmente azedo — de que nem toda ideia merece sair do papel. O que se vê em cena não é uma homenagem ao maior nome do Realismo brasileiro, mas uma exumação estética: o cadáver da sutileza machadiana é vestido com roupas de brechó — mal ajustadas, puídas — e deixado em cena para balbuciar um texto reescrito às pressas, contaminado por vícios de linguagem e, talvez, por uma vergonha mal disfarçada de ousadia.
A independência, nesta montagem, é ostentada como um troféu — quando talvez devesse acender um sinal de alerta. A companhia parece orgulhar-se da liberdade criativa que conquistou, mas faz uso dela, ao que tudo indica, para ignorar deliberadamente qualquer forma de bom senso narrativo. Há um certo charme na precariedade quando ela é intencional e bem trabalhada; aqui, porém, o que se vê beira a negligência, disfarçada sob o rótulo de estética alternativa.
Assis, com sua prosa afiada e sua ambiguidade luminosa, é aqui reduzido a um eco pálido de si mesmo. A adaptação desmonta o romance e o esvazia de seu miolo psicológico, de seu sarcasmo velado, de sua alma — tudo em nome de uma “atualização” que soa como o resultado de um resumo escolar mal digerido. O que resta é um Frankenstein dramatúrgico: partes costuradas sem nexo, sem vida e, talvez o mais grave, sem propósito.
Assinar tanto a adaptação quanto a direção é um ato de teimosia — ou, quem sabe, de coragem mal calculada. Aline Bourseau conduz o espetáculo como quem tenta pilotar um barco furado com um leme de papel. Suas escolhas cênicas oscilam entre um teatralismo exagerado e um experimentalismo sem rumo, resultando em uma montagem que parece ensaiada às pressas e encenada sob a equivocada convicção de genialidade. O que poderia ter sido uma releitura provocativa se transforma, no fim, em um desfile de indecisões.
Há empenho — isso, ao menos, é inegável. Mas empenho sem direção é como gritar no vácuo. Os atores parecem aprisionados entre trechos mal pinçados de um texto genial e a tentativa desesperada de preencher as lacunas da encenação com carisma. Ninguém se salva, embora alguns tentem nadar. Clara Werneck, ao chorar em cena, atordoa o público — que fica sem saber se o choro é pelo texto, pela interpretação ou, quem sabe, pelo simples fato de ver seu nome na ficha técnica.
O cenário assinado por Marzipã Demodê — nome que promete uma estética kitsch-chique — entrega, na prática, apenas uma composição desconexa: uma cadeira deslocada aqui, outra acolá. A ambientação cênica parece ter sido feita por uma equipe que brigou no meio da montagem e levou quase tudo embora, deixando para trás apenas o que não coube no carro. Mesmo o fundo infinito negro, que poderia salvar-se pela simplicidade, sucumbe à rugosidade de um tecido mal esticado, incapaz de sustentar sequer a máxima de que menos é mais.
Essa liberdade de adaptação de Dom Casmurro é, paradoxalmente, ao mesmo tempo esquecível e imperdoável. É a prova de que nem todo desejo de revisitar os clássicos vem acompanhado da competência — ou da humildade — necessárias para fazê-lo. Se Bentinho assistisse à encenação, sairia ainda mais paranoico. E Capitu, ao ver no que transformaram sua imagem, talvez nem cogitasse o embarque: teria pulado no mar ao primeiro aceno. Resta a pergunta que paira no ar pesado do teatro: quem traiu quem? O teatro, Machado, o público?
A resposta é dolorosamente simples: todos fomos traídos. E, desta vez, Capitu não tem culpa. Ela é só mais uma vítima — assim como nós, os que permaneceram sentados até o fim, à espera de algum sentido, de alguma fagulha de beleza, de um gesto que redimisse a noite. Não houve. Permaneci, por respeito ao palco, por amor à arte, ou talvez por teimosia. Mas saí com a sensação de que o espetáculo, este sim, já havia abandonado o público muito antes do último aplauso.
Por Mauro Senna & Paulo Sales
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